- Você anda usando drogas demais, e o seu sistema nervoso parece não mais aguentar te ter como dono. Já pensou em procurar um especialista?
- Que tipo de especialista, uma puta? Talvez nem ela me ajude... HAHAHAHA!
- Não, é sério... - os olhos ficavam doloridos pelas luzes fracas e a dificuldade de enxargar dentro daquele quarto escuro. - Daqui a pouco você não consiga mais nem levantar dessa cama... e quando isso acontecer, o que vai ser da sua existência? Vai virar pó? Não, não vai!
- Do jeito que eu ando, eu JÁ sou pó, e isso não me parece nada ruim. Esqueceu do que você me disse semana passada sobre o Cazuza?
- Cazuza? Eu já falei tanta coisa desse cara...
- "Morri morto, já na cova. Vive morrendo, já na cova. Nasci sabendo que não havia escapatória. Então, porquê?" E eu te pergunto, porquê, afinal de contas? Se nem o amor me visitou nesses anos todos que eu vivi, como alguma coisa poderia me fazer negar-me ao pó? E o pó é tão reconfortante...
- A ignorância também! E isso é o que mais me incomoda em você!
- Incômodo? Agora virou uma questão de simples incômodo? Eu me incomodo de ter de levantar pra bater a cinza no cinzeiro, e me incomodo por ter sido idiota de ter deixado ele longe da minha cama. Esse tipo de coisa me incomoda. Eu sou um incomodozinho qualquer pra você?
É, o cheiro de morte, aquele cheiro negro e ocre de cinzas velhas, cinzas embebidas nos restos de líquidos das garrafas espalhadas pela casa. O ar pesado e carregado, ausente de luz dos dias que passaram e encoberto por cortinas longas e escuras. Ela já não tinha mais certeza das emoções e dos sentimentos que um dia havia nutrido por aquele menino prodigioso, dezesseis anos apenas, e já capaz de discursar sobre assuntos complexos para pessoas de mais idade. Ela não o achava um gênio, mas o tinha como alguém especialmente maravilhoso. Deus havia gasto um pouco mais de tempo naquele rapaz, disto estava certa.
- Não. Eu te amo, eu te adoro, até mesmo quando eu não te vejo mais em parte alguma dessa sua cara suja e seca. Você não tem se alimentado bem...
- Claro, quando eu comia comida saudável, sentia fome, e eu odeio sentir fome. Quando comia mal, não conseguia comer mais nada durante um dia inteiro. Desisti de comer. Até de água parece que eu não preciso mais.
- Faz quanto tempo que você não come nem bebe nada?
- Uns dias...
- Dias?! - Esticou o braço, e pela primeira vez desde que havia entrado por aquele portal alto e vislumbroso sentia o toque daquela pele suja e cansada. - Deus do céu, você está péssimo! Sua pele está rançosa!
- Virei manteiguinha! HAHAHAHAHA vou me derreter todo por você, mulher dos dedos finos...
- Para com isso, vem comigo! Você precisa de um banho e de alguma coisa pra comer.
- E pra beber!? HEIN, E PRA BEBER!? SABE O QUE EU TENHO PRA BEBER?! NÃO?! - Ele gritava nos ouvidos dela, já longe de alguma razão humana. Só havia ali a máscara infame do palhaço da Loucura e do bardo da Dor. Havia nele segundas intenções, e ela sabia disso.
- Não, não sei. O quê há para beber? - Perguntou impávida, desabalada e concisa. Não se deixaria levar pela tentativa de expurgá-la.
- Saia daqui. - Seus olhos eram invisíveis. Olhavam o chão com a mesma frieza com que este lhe olhava.
- Não vou.
- SAIA DAQUI !!!
- Eu não vou te abandonar, você não precisa desistir de tudo, você não pode perder assim!
- A vida é um jogo roubado! Cartas marcadas, dados viciados, escolha a analogia que for, mas o Homem sempre perde pro Homem, e comigo não será diferente! Só não quero retardar a verdade e amargurar mais os meus dias perdidos de vida insana e correta..
- Insanidade é tudo o que quis dizer o que nós vivemos!?
- Insanidade foi tudo o que eu consegui tirar da vida que nós seguíamos! Você é você, sua capacidade de lidar com tudo isso que insistem em chamar de vida é muito melhor do que a minha. Jamais fui capaz de lidar com a dor, com a felicidade... Nunca consegui entender o que é Amor, e já não quero mais entender.
- Mentira. Se você não amasse, não iria desistir. Você só se cansa daquilo que tenta, e você ainda tenta com todas as forças amar. Você me ama! EU TE AMO! Não há fuga, não há saída, nem desculpas ou motivos. Eu, com vinte e um anos me apaixonei por você, de dezesseis... minhas amigas ainda me chamavam de idiota e retardada por acreditar que você era especial, quando viam em você só mais um moleque mal penteado e encolhido nos cantos...
- Nunca deixei de ser isso. - Apanhou o maço de cigarros. Eram Marlboros, vermelhos. Um maço amaçado e com mancha de molhado, provavelmente de uma bebida derramada. Era a mesma tonalidade da mancha dos lençóis. Acendeu um e jogou no canto do chão, debaixo da cama, o maço. O isqueiro no bolso. - Aliás, demorei muito tempo pra entender o quão retardado eu era. Nunca valeu mesmo a pena ficar olhando você passando com aquela cara de idiota. Eu deveria ter me apagado antes de você querer me iluminar com essas luzes de palavras bem elaboradas e esses dedos finos.
- E você sempre gostou dos meus dedos. Você, que gosta de tocar piano, sempre me admirava ao tocar... porquê você ficou com tanto medo e resolvou desistir?
- Eu não tenho medo! Eu não estou desistindo! Eu já desisti, eu nunca sequer começei! Foi um erro, foi um erro...
Um silêncio.
Para ambos, dizer que o amor entre eles havia sido um erro era como dizer à Deus que sua criação era imperfeita e que merecia o esquecimento. Sim, ambos tinham certeza de que tudo aquilo merecia ser esquecido, mas sabiam também da certeza de que a eternidade de seus olhares, a sinceridade de seus toques, e até mesmo a irritante previsibilidade os tornara impossíveis de esquecer. Eles haviam vivido, e o que se viveu com todas as emoções, jamais seria esquecido.
- Não é um erro. Eu tive certeza disso no dia em que percebi que começava a te perder. Aliás, sempre tive certeza, só tive medo de admitir.
- Admitir, sentir, certezas... você adora essas palavras, não é? São o seu esquema linguístico preferido... sempre foi.
- É, porque com você eu aprendi a sentir, a estar certa, e a admitir. Eu aprendi a não ter medo do medo.
- Andou ouvindo Legião Urbana, foi? - Os olhos dele viravam para a parede da esquerda, e da parede da esquerda para o cigarro. Era um quadro de Van Gogh, "Caveira com Cigarro Aceso". Ele sempre gostara de mostrar à si próprio seus defeitos, suas falhas, suas fraquezas. Ele acreditava que isso o tornava mais forte às críticas e a qualquer possibilidade de mudança. Na verdade, mal sabia que só por acreditar em algo, tornava-se mais forte.
- A melancolia do Renato simplesmente não é suportável. Você sabe disso..
- Ele morreu.
- E daí?
- A melancolia dele acabou. - e olhou-a nos olhos. Sua fumaça expelida pelas narinas fazia com que o ar tomasse um tom acinzentado. Nesse instante ela sentiu dentro da barriga, subindo até o coração, que aquele era um momento final. Ali era a despedida. Ele estava morto, não havia volta.
- O quê você tomou?
- Você nunca vai saber.
- Conta. Eu preciso saber...
- Depois que eu fechar os olhos, quero que você saia por aquele portal e nunca mais volte. Eu vou ficar bem. - mesmo sabendo que não era verdade, porque ele não tinha certeza, disse-lhe que ficaria bem. Suas costas doíam, seu corpo não mais respondia direito aos seus comandos e a única coisa que conseguia fazer direito, era falar. Até mesmo fumar era complicado.
- Vou passar a noite aqui do seu lado. - puxou o lençol fedido e sujo para o lado, e deitou-se ao seu lado. Acalmou a cabeça em seu peito e relaxou.
- Você não vai mesmo embora, não é?
- Não.
- Nem se eu gritar de novo e começar a te empurrar porta à fora?
- Você não vai fazer isso.
Entrelaçou seus dedos aos dedos dela, jogou a guimba no cinzeiro e pediu perdão à Deus. Jurou que se houvesse uma próxima vida, não seria fraco assim. Suas mãos começaram a formigar, e com um último esforço colocou sua mão por sobre os olhos dela. Ela começou a chorar e apertou forte seu peito, e ele sentiu um pouco de dor, mas não disse e tão pouco fez alguma coisa. Desistiu de reclamar. Desistiu de afastá-la nos momentos bons. Ele morrera. Ela, dormira.
Ao acordar no dia seguinte tentou acordá-lo, infantilmente e inocentemente. Quando se permitiu, chorou. Levantou da cama e caminhou pelo portal.
Nunca mais voltou. Nunca mais soube qualquer coisa sobre aquela casa e sobre ele. Mas agora discordava de Cazuza quando dizia:
"Eu não posso causar mal nenhum
A não ser a mim mesmo
A não ser a mim mesmo
A não ser a mim."
Levou consigo seu isqueiro de metal e uma mecha de seus cabelos pretos. E o Amor, e os detalhes.
Eu não sei o que é isso, mas eu sei o que provocou. Vide título.