3 de novembro de 2009

Observar

Numa tentativa cansada por alcançar o ritmo antigo de postagens. 
Quero minha liberdade de volta!





Não há muito do quê se dizer.

Um mendigo na rua costurando crucifixos em um pedaço de tecido longo e velho, verde, sentado à uma mesa de damas típica dos velhinhos de praça. Ele era velho, mas não estava jogando damas. Estava jogando com a vida. Estava jogando com Deus.
Um homem sem fé, é o que se poderia dizer dele. Talvez, alguém pudesse ir contra a nossa maré e dizer que era um homem de muita fé. Costurar Deus com uma linha frágil num pano velho; é, um ato de fé. O que mais impertigou esses pensamentos fora sua aparência, desvelada de cuidados e largada. Barba mal feita, amarelada pelo tempo e pelo pó dos dias, e quem sabe umas cervejas. Muitas até. A aparência de velho não era a de um velho realmente. Era o velho de rua, aquele que com 50 anos parece ter 70. Era um mendigo de cabelos até os ombros e mal cortados, lembrando o saudoso Raul. Mas Raul era importante. Ele teve clipe musical e tudo. Aquele homem tinha uma linhazinha, um pano, e Deus. Raul morreu de cirrose entre outras coisas, e aquele homem ainda estava vivo. Costurando a fé. Com linhas invisíveis. Num pano velho e acabado.

Tá, isso tudo vi do ônibus parado num ponto esperando os passageiros subirem, ouvindo How to Save a Life e pensando na embriaguez leve e doce de algumas cervejinhas. "As pequenas coisas que te levam a pensar em coisas grandiosas" (Clarice Lispector), isso sempre me atraiu. Assim como os pequenos detalhes, aquelas pequenas aparições da vida nos movimentos das mãos, no ajeitar dos braços, na postura nua e sonolenta, no caminhar nervoso e ansioso. Até no segurar da caneta. Esse mendigo e sua fé me fizeram lembrar de como é bom poder perceber as coisas. Perceber o mundo. Fazer parte dele e viver nele. Principalmente viver nele, até por andar faz um dias fora de algum mundo. Nem no meu mundo eu tenho passado os dias. Sabe, parece que eu passei em branco! Coisas aconteceram, aconteceram comigo, mas eu não aconteci... é, e eu fui pensando assim no embalo do ônibus.


O ônibus vira uma carruagem pros pensamentos e também um tipo de portal que te transporta pra qualquer lugar, maldito ou angelical. Uma questão de percepção, essa mesma que me relacionou um mendigo velho e suas costuras paradoxais com o Raulzito.
Senti um nervoso de continuar pensando e dormi.

Um comentário:

  1. Poderia ser egoísta e falar que você escreveu o terceiro parágrafo para mim, mas prefiro dizer que ficou tudo muito bom de ler. E que eu quoto o primeiro período do último parágrafo todo.
    O que seria de nossas elucubrações sem os ônibus?

    Como sempre, muito bom, João. ♥

    ResponderExcluir